A LIBERDADE E A PRISÃO DOS SENTIMENTOS
- Davi Roballo
- 30 de jun.
- 4 min de leitura
Vivemos um tempo em que a liberdade parece ter vencido todas as batalhas exteriores, mas permanece derrotada dentro. Desatamos os nós da repressão, quebramos as algemas do moralismo sexual, dançamos em celebração ao corpo e à ousadia do desejo — mas, paradoxalmente, seguimos emocionalmente encarcerados. Gritamos por liberdade nas praças virtuais, mas sussurramos, em silêncio, nossa incapacidade de sentir com inteireza. A sexualidade foi liberada; os sentimentos, interditados.
Na superfície, a cena é vibrante: corpos se encontram sem culpa, se tocam sem cerimônia, se abandonam à velocidade de aplicativos e olhares vazios. Mas o que se apresenta como liberdade carrega em si o espectro da superficialidade. Uma nova forma de aprisionamento, mais sorrateira que as antigas prisões da religião ou da moral: agora, somos cativos do vazio, do gesto que não se ancora, do prazer que não se enraíza. E assim, quanto mais nos entregamos aos rituais da carne, mais nos afastamos da possibilidade de comunhão verdadeira. O beijo, antes invocação de presença, tornou-se um reflexo automático. O toque, um gesto que escorrega sem deixar marcas.
Desaprendemos a sentir. E não porque sentimos menos — mas porque sentimos de forma dispersa, fragmentada, defensiva. Criamos um teatro onde a espontaneidade é ensaiada, e o desejo, ao invés de ser ponte, transforma-se em escudo. Vivemos numa era onde o encontro entre dois seres é frequentemente reduzido a um atrito entre peles, desprovido do silêncio sagrado que antecede o amor. As palavras, outrora sopros de alma, agora ecoam como fórmulas gastas. O olho já não penetra. A mão já não acolhe. O corpo se oferece, mas a alma permanece trancada.
Eis o paradoxo: quanto mais liberdade temos para desejar, menos liberdade temos para amar. O desejo, esvaziado de vínculo, torna-se um fim em si mesmo, um labirinto hedonista que jamais leva ao centro do ser. Vivemos como se estivéssemos livres — mas presos num ciclo de saciedade que nunca se satisfaz. O orgasmo é consumado, mas o vazio persiste. A cama partilhada, mas a solidão não se despede. A sexualidade, que poderia ser celebração do encontro, torna-se simulacro: o prazer performado sem o lastro do sentimento autêntico. Confundimos liberdade com descompromisso, confundimos amor com apego instantâneo, confundimos o outro com um reflexo narcísico de nossos próprios buracos.
A modernidade nos ofereceu a conquista da autonomia corporal, mas esqueceu de nos ensinar a sustentar emocionalmente a liberdade. Na ausência de um propósito que transcenda o instante, o prazer torna-se uma farsa que se repete. E por detrás dessa farsa, há um desejo abafado — o de ser visto em profundidade. O de ser tocado não apenas pela pele do outro, mas por sua escuta, por sua presença sem defesas. Mas esse desejo, por ser vulnerável, é recalcado. Negamos sua existência porque reconhecê-lo exigiria coragem: coragem de se mostrar, coragem de não saber, coragem de ser ferido.
E é nesse ponto que o erotismo se torna sintoma. Não mais potência criativa, mas repetição neurótica. O corpo dança, mas a alma assiste de longe. Os encontros se multiplicam, mas o amor se exila. E cada novo prazer consumado, mas não integrado, apenas reafirma a prisão: a prisão de um eu que teme o amor por saber que ele exige entrega, risco, renúncia ao controle. Somos analfabetos emocionais num tempo de excesso de liberdade formal. E essa liberdade, sem profundidade, transforma-se em um deserto afetivo.
A verdade é que o desejo mais profundo do ser humano não é pelo orgasmo, mas pela reciprocidade. O gozo verdadeiro não é o da carne apenas, mas o da alma quando se reconhece na alma do outro. E isso, nenhum corpo pode oferecer por si só. Para que esse reconhecimento aconteça, é preciso presença, escuta, tempo, vulnerabilidade — tudo aquilo que o mundo apressado, ansioso e performático nos ensinou a evitar. Há uma nostalgia difusa no ar, uma saudade do que nunca se viveu plenamente: uma forma de amor que não seja apenas reflexo do eu, mas convocação do outro em sua alteridade radical.
A liberdade, portanto, não é um território conquistado, mas uma travessia interior. Ela não se mede pelo número de escolhas possíveis, mas pela profundidade com que se vive cada escolha. Não é estar disponível para todos, mas ser inteiro com alguém. E essa inteireza só é possível quando desarmamos nossas defesas, quando deixamos de temer a entrega, quando ousamos sentir. Pois sentir — verdadeiramente sentir — é o maior ato de coragem num tempo que nos ensinou a sobreviver anestesiados.
No fim, não é de liberdade que carecemos, mas de coragem. Coragem de amar sem garantias. Coragem de ser tocado na alma. Coragem de ser visto em nossa nudez mais radical, que é a emocional. E talvez, quando essa coragem florescer, redescubramos que a verdadeira liberdade nunca esteve na superfície do ato, mas no silêncio profundo onde duas presenças se reconhecem. A liberdade do encontro. A liberdade do pertencimento. A liberdade de ser com — e não apenas de ser contra, ou de ser só. A liberdade, enfim, de amar sem máscaras, sem fugas, sem armaduras.
Esse é o cárcere mais difícil de romper: o que nos impede de sentir. E também o único cuja chave está dentro.
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