Dois bêbados, um cachorro e um triste fim…
- Davi Roballo
- 24 de out. de 2013
- 8 min de leitura

Somente poucos sabiam o que traduzia a aura de tristeza profunda que Júlio trazia pairando nos olhos, mesmo quando alegre. Era como se seus olhos tivessem a mesma aparência daquelas casas que possuem duas cortinas, uma branca em primeiro plano com rendas para combinarem com a decoração e outra em segundo plano, totalmente escura com a finalidade de barrar a claridade.
Poucas são as pessoas que viram Júlio César abstêmio, sempre o viram mergulhado na cachaça e no gim, sua bebida predileta. Em sua companhia estava sempre seu amigo Dimas, o violão e o Juvenal, seu vira-lata, que faziam companhia a sua tristeza por comungarem desgraças parecidas.
Na época, quando foram socorridos por uma ONG, tanto Júlio quanto Dimas apresentavam a pele avermelhada, curtida e inchada devido ao álcool. Estavam na faixa dos 30 anos, sendo que Júlio estava há mais de 15 na bebida. Começara quando por força do destino fora morar com a avó naquela cidade onde nasceram dois Presidentes da República. Tinha nascido na capital e lá viveu feliz até os seis anos, até que uma tragédia lhe marca a vida.
Seu pai suspeitando de que sua mãe o traísse a agride após uma discussão. Sua mãe aos prantos lhe pega pelo braço e enfia algumas roupas numa mala e diz que vai embora para casa de sua avó. Júlio com os olhos estatelados não consegue falar, não consegue se mexer por conta própria e é praticamente arrastado por sua mãe como um robô e quando chega à sala seu pai puxa da cintura uma arma e diz que sua mãe não irá a lugar algum e lhe desfere um tiro entre os olhos, Júlio continua estático sem movimento e observa seu pai encostar a arma embaixo do queixo e dispará-la. O menino ainda parado observa uma mancha de sangue misturado com uma massa esbranquiçada pingar do forro da sala.
Minutos depois foi encontrado pelo vizinho ainda estático, com as calças molhadas e olhar paralisado num crucifixo de madeira dependurado da parede nua. Não presenciou os atos fúnebres dos pais e dias depois já estava morando com a avó materna.
Desde o acontecido não pronunciara mais nenhuma palavra, havia se calado, para todos e para a vida. Um ano depois como sempre fazia, estava escorado na janela da casa com o pensamento e o olhar distantes, quando desviou o olhar para a casa da vizinha e viu um menino perto da piscina e voltou ao olhar distante, minutos depois suspirou e quando se preparava para retornar ao centro da casa olhou novamente para a piscina da vizinha e viu lá dentro a criança debatendo-se, sua reação foi sair correndo até a vizinha e lá lhe puxou o vestido e disse: “teu filho caiu na piscina”.
Passou deste dia em diante a ser muito bem querido pela vizinha que sempre o agradava com doces e outras guloseimas. Nunca conseguiu concluir bem brincadeiras com outras crianças, pois tinha o habito de arrancar a cabeça de bonecos e as rodas de carrinhos depois de certo tempo brincando, o que enfurecia seus poucos amigos de entretenimento.
Por varias vezes causou espanto e indignação de vizinhos ao crucificar sapos e pererecas numa cruz de madeira e fincá-la no chão e prostrar-se diante dela a repetir compulsivamente “um crucificado é incapaz de salvar alguém, um crucificado pode fazer nada…” enquanto que seu corpo movimentava-se para frente e para trás e lágrimas caiam de seus olhos.
Tinha ojeriza de crucifixos religiosos e quando sua avó tentou ensiná-lo a rezar, dizia transtornado que não adiantava de nada, pois que “o crucificado não desceu para ajudar minha mãe quando pedi”, mesmo com varias insistências e apelos sua avó não conseguiu convencê-lo do contrário. Viveu aos trancos e barrancos até a adolescência, embora um pouco reservado e de pouca conversa sumia nas vésperas do dia dos pais e das mães.
Sua avó Tarsila, nunca mais se recuperou do baque que sofreu por perder de forma tão estúpida a única filha. Desde a adolescência fumava e bebera ocasionalmente, mas devido a morte da filha seus vícios se agravaram. Sentada numa poltrona onde passava praticamente o dia todo, -pois era viúva de promotor e pagava para realizarem as tarefas domésticas-, pedia para Júlio acender seus cigarros e servir seu gim, tarefa que o menino desempenhou até os 11 anos sem curiosidade. Mas, aos doze anos, resolveu pedir a sua avó para que ele mesmo desse a primeira tragada no cigarro, além disso, começou a tomar um golinho do gim, embora tenha tonteado com primeira tragada do cigarro e achado muito ruim o gole de gim, continuou fazendo isso, até que uma tragada e um gole já não foram mais suficientes.
O tempo foi passando e o ensino deixou de ser atraente a Júlio César que abandonou os estudos após concluir com dificuldades o ensino médio. A única coisa capaz de prendê-lo por um determinado tempo era a música, e nesse ínterim de aprendizado, não faltou nenhuma aula de violão e de vocal. Dizia sempre que a música era um passaporte que o conduzia para fora de sua própria vida.
Nessa época embora não admitisse a bebida já havia roubado sua concentração e a sua capacidade de relacionar-se com os colegas, pois nas festas que ia ficava de pileque terminando a balada a dormir em qualquer canto ou até mesmo no banheiro deitado sobre o próprio vômito. Seu organismo cobrava necessidade por bebida antes do café da manhã e se estendia para o resto do dia.
Bebida não faltava em casa, pois Tarsila estava também em estado adiantado de dependência alcoólica, tanto que não percebeu a situação de seu neto, muito menos ligava para as observações feitas pelos vizinhos a respeito de Júlio César.
Ao completar 18 anos foi liberado na primeira inspeção de saúde para as forças armadas, pois ficou evidente sua dependência alcoólica. Dois meses depois Tarsila morreu sentada na mesma cadeira onde esteve por quase doze anos na maior parte do seu tempo, com os pensamentos distantes, e vez por outra escorriam por sua face maquiada alguns filetes de lágrimas. Morreu maquiada, pois todos os dias era função de sua acompanhante e empregada maquiá-la. Dizia sempre que a morte não a encontraria de forma alguma sem maquiagem, sem tinta no cabelo e esmalte nas unhas.
Após a morte da avó, Júlio ainda teve bebida por determinado tempo, mas quando os mantimentos acabaram juntamente com a bebida, começou a vender a mobília para poder comer até que a vizinha que lhe era grata por ter salvado o filho, o impediu argumentando que ele iria acabar com tudo que a avó havia deixado, e então passou a dar-lhe comida. Com a ajuda e os conselhos, tratou de cortar o cabelo, raspar a barba, banhar o corpo e frequentar o AA.
Em poucos meses estava cantando em bares provendo assim seu sustento. Seis meses foi o que durou sua abstemia. Certo dia foi assediado por uma garota que gostara muito de seu repertório MPB e foi elogiá-lo, além de convidá-lo para esticar a noite.
– Oi, sou Gisele, gostei muito de tuas interpretações de nossa MPB.
– Obrigado! Tento na medida do possível fazer o melhor, fico feliz em saber que gostou.
– Tanto gostei, que desejo saber se topa espichar a noite.
– Não, eu não posso.
– Já sei. Tua mulher está aguardando.
– Não, imagina, sou solteiro.
– Bom se estiver interessado me procura, vou ficar até fechar o bar estou sozinha.
Júlio ficou observando Gisele retornar a sua mesa e viu que se tratava de uma mulher de 25 a 30 anos. Cogitou que devia ser solteira e que com certeza queria apenas divertir-se e diverti-lo e enquanto cantava a via sorrindo e olhando para ele de uma forma atraente e sensual que o encabulava, pois só tivera três experiências sexuais com três meninas de sua idade.
Gisele era para ele um desafio e ele mais do que nunca queria encará-la, mas como? Sem uma doze de gim seria impossível, além do mais, quando que teria a oportunidade de um avião daqueles dando sopa novamente. Em contrapartida, outra parte sua dizia, “não posso, pois eu estou limpo” e a outra antagonista, emendava, “é uma dose só, traça o avião e amanhã volta a deixar de beber, amanhã já é outro dia”. Terminou o repertório, pegou seu violão e foi até a mesa onde estava Gisele sozinha.
– Posso sentar-me à mesa?
– Claro – disse Gisele com um sorriso maroto – estava a tua espera.
– Porque eu- perguntou Júlio um tanto acanhado- se há tantos homens mais experientes por aqui, experientes e ricos.
– Porque tu és maior de idade- rindo- mas tem uma carinha de anjo, de cãozinho abandonado… na verdade, tua voz me tocou, me emocionou. Fez-me lembrar de meu pai tocando e cantando as mesmas músicas que tu tocaste. Mas a tua voz me fez-me sentir uma musa, como se tivesse cantando pra mim.
Nisso chega o garçom com uma doze de uísque.
– Mais alguma coisa dona?
– Queres tomar alguma coisa –perguntou Gisele- olha só, não sei teu nome.
– Júlio. Pra mim uma dose de gim, fazendo favor.
Uma dose puxou mais uma dose e os dois perderam-se pela noite. Júlio nunca mais viu Gisele, soubera aquela noite que ela era uma representante comercial que viera aquela cidade pela primeira vez, no entanto Gisele até hoje não deve de saber que naquela noite ela ajudou a bordar a mortalha de Júlio César, que voltou a beber numa voracidade ainda maior que anteriormente.
Novamente conduzido pela bebida, perambulou pelas ruas e nesse périplo conheceu Dimas outro jovem alcoólatra que se criara no interior onde perdeu os pais assassinados numa guerra de famílias. Dimas vivia com uma tia idosa de seu pai, que fez de tudo para compreender o que se passava na cabeça do sobrinho que raramente falava e não conseguia ficar por muito tempo num determinado lugar, caminhando a maior parte do dia vindo para casa apenas para dormir.
Desde que Dimas conheceu Júlio Cesar, diminuiu suas caminhadas. Os dois amigos eram sempre vistos engarupados juntamente com um cachorro em uma bicicleta com uma mochila preta onde estava acondicionada uma ou duas garrafas de cachaça, linhas e anzóis, rumando sempre em direção a lagos e arroios onde se punham a pescar e a beber num silêncio sepulcral.
Nos oito anos em que fizeram companhia um ao outro, pouco conversaram, completamente lacônicos se entendiam no próprio silêncio que traduzia a dor que não haviam superado.
Nas noites escuras e frias ao dormirem pelas calçadas muitas das vezes Júlio César movido por pesadelos levantava aos gritos livrando-se das roupas como se estivessem em chamas e então deitava nu numa posição fetal e chorava copiosamente, enquanto que Juvenal inquieto latia e lambia suas lágrimas. Dimas assistia tudo quieto até que os soluços diminuíssem e então convencia o amigo a vestir-se e a voltar a dormir cobrindo-o com velhos cobertores. No dia seguinte nunca tocavam no assunto, sequer faziam questão de lembrar.
Chegaram a ONG através do Tio Jari, que os havia conhecido na rua. O tempo deles na ONG foi o mais curto e talvez o mais marcante na vida de todos. Quando chegaram foram bem recebidos por Dona Damaris e seu esposo Damião, que algumas semanas depois convenceram Júlio César a retornar a casa da avó e a tentar um novo tratamento, pois perceberam o talento que aquele mendigo tinha com as cordas musicais e com a voz.
Júlio e Dimas iniciaram um novo tratamento no AA, período em que os componentes da ONG rezavam e torciam muito por eles, mas pouco ou de nada adiantou, três meses depois Dimas morreu pelo agravamento de uma tuberculose e o fígado de Júlio César já não funcionava mais, o que lhe levou a morte 23 dias depois do amigo. Juvenal foi adotado por Dona Damaris e permaneceu com ela até sua morte, por volta de dez anos depois.
Dois bêbados, um cachorro e um triste fim…
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