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Linguiça e Mandioca: uma tragédia urbana




Abril de 1982, começou a safra de arroz nos municípios da fronteira oeste do Rio Grande do Sul. As cooperativas e cerealistas dia e noite funcionam a todo vapor, secando, descascando e beneficiando arroz. De todo processo resta apenas o farelo e a casca. O primeiro é vendido para as fazendas, a segunda é descartada nos campos para ser queimada ou apodrecer ao relento e posteriormente virar adubo para as inúmeras hortas da cidade.

A região aonde a casca de arroz é descartada se parece na época de safra um grande deserto, pois torna a paisagem amarelada com cascas esvoaçando ao sabor do vento enquanto que inúmeros pássaros e pombas deliciam-se com a quirera que fugiu pela peneira juntamente com a casca.

Quando o dia começa com os primeiros raios de sol ainda suaves, inúmeras pessoas chegam com enormes chapéus tendo as mãos bacias, lonas e sacos. Distribuem-se pelas beiradas dos morros de casca de arroz. Estendem a lona, enchem a bacia de casca e levantam acima da cabeça e com movimentos trêmulos fazem com que a casca caia gradualmente de forma que o vento desloque a casca de dois a três metros da lona enquanto que a quirera a parte mais pesada repouse sobre a lona. Horas a fio os quireireiros ventam a casca de arroz. Continuam nesse ritual até que o sol atinja o zênite e posteriormente desapareça no lado oposto a que nascera.

No meio da manhã a sombra de um arbusto já é o suficiente para acomodar uma roda de chimarrão feito com uma erva mate rala. A cuia passa de mão em mão enquanto conversam frugalmente, pois nos rostos há mais sofrimento do que conversa, ali estão lutando para sobreviver do que é descartado pelas maquinas de beneficiamento. Almoçam ali mesmo, quirera com sardinha, pão seco, água e carne de ave quando com sorte conseguem capturar algumas pombas nas arapucas.

Chegando o fim da tarde cada família consegue em torno de 60 a 70 quilos de quirera e então dividem a carga e serpenteando as ravinas em fila indiana rumam para casa onde estocam um pouco e comercializam o restante. Entre eles esta a velha Talita, sua nora Helena e seus netos Luiz Antônio o “Linguiça” e Ademir o “Mandioca”.

Linguiça está com 13 anos e não pode ver ou sentir cheiro de linguiça. Numa época de escassez quando tinha 10 anos a fome o visitou e não arredou pé. Nesse período sua avó e sua mãe para saciar a fome de seus três outros irmãos mataram e cozeram todos os gatos da região e entre os filhos somente linguiça sabia disso.

Quando não havia mais gatos pela redondeza e a fome não dando trégua, Linguiça já cansado do périplo em busca de pombas e passarinhos, achou uma mina de ouro. O velho Castelhano toda sexta-feira fazia mais de duzentos quilos de linguiça e deixava secar a meia sombra em seu galpão.

Por mais de seis meses toda sexta-feira, Luiz Antônio roubou em torno de cinco quilos de linguiça do velho que nunca deu falta do produto. Mas num determinado dia o neto de Castelhano o pegou no flagra e juntamente com seus tios o imobilizaram. Foi amarrado e obrigado a comer linguiça crua e quando se renegava, apanhava.

Comeu tanta linguiça que os últimos pedaços ele regurgitava e era obrigado a comer novamente enquanto lhe açoitavam e diziam-lhe “come seu cachorro magro e aprenda a nunca mais roubar linguiça”. Foi obrigado a desfilar pela rua com uma rodilha de linguiça no pescoço. Magro, comeu forçado tanta linguiça que parecia uma cobra após ter engolido um rato.

E assim percorreu a principal rua do bairro enquanto lhe achincalhavam e as lágrimas encharcavam a sua camiseta surrada e o chão por onde passava. A algazarra só acabou quando o velho Quizote acionou um berro 44 dispersando a multidão, já que era um PM aposentado e tinha fama de durão e não tolerava injustiça.

Quizote conhecia a sina da família Meirelles e vez por outra no meio da noite deixava na porta do casebre um naco de carne, feijão, arroz e fubá. A mãe de linguiça envergonhou-se do filho ter sido pego em tão famigerado ato, mas não o repreendeu, pois no fundo sempre fez vistas grossas para as facilidades em que Linguiça arranjava misturas para comerem com quirera ou macarrão vencido que os mercados dispensavam em suas lixeiras.

Certa vez, cansados dos sacrifícios e das humilhações a que eram sujeitados para obter o necessário para suas frugais refeições, os irmãos resolveram em assembleia tirar a própria vida. Linguiça sugeriu envenenamento, argumentando que o tóxico iria lhes tirar a vida sem sofrimento, e que partiriam num estado de sono profundo e assim resolveram tomar cada um, uma dose de chumbinho num copo de leite.

Quando mandioca encostou a borda do copo nos lábios jogou o copo longe ao mesmo tempo em que teve um ataque de choro compulsivo, surpreendidos, Linguiça e Elisabete perguntaram o que houve e Mandioca ainda em lágrimas disse “nossa mãe já sofreu muito e nós não temos o direito de fazê-la sofrer ainda mais”. Desistiram de por fim a existência…

A vida não havia facilitado em nada as coisas para Helena, Talita e as crianças. Quando linguiça foi pego roubando o velho Castelhano, seu pai Dionísio há dois anos havia sido levado por um tiro de um PM que o confundiu com o abigeatário Vaca Preta. Filho único da velha Talita, Dionísio era um rapaz negro de porte atlético, trabalhador que tinha orgulho de sua honestidade tendo como troféu o nome limpo no comércio da cidade. Religioso e ordeiro amava a mulher e os filhos. Mesmo com a simplicidade do casebre, comida, alegria, fé e amor nunca faltaram quando Dionísio esteve por ali.

 “Odeio polícia pé de porco” quase que sempre balbuciava Linguiça quando se lembrava da morte estúpida do pai quando ele tinha oito anos. Helena tinha consigo a responsabilidade de criar quatro filhos e cuidar de sua sogra diabética, que mesmo assim fazia de tudo para colaborar com pequenos afazeres com a nora.

A fome dava sossego para as crianças quando se iniciava o ano letivo. Logo que começava o período escolar Linguiça e Mandioca pelos fundos do colégio colocam suas irmãs mais novas para comer com eles no fundo do refeitório, fato que as merendeiras apiedadas sempre fizeram vistas grossas não dando conhecimento para a direção.

Mandioca com onze anos e apesar das dificuldades ia bem na escola. Era comum vê-lo deslocando-se feliz ao colégio abrigando como fossem bens valiosíssimos em baixo do braço os cadernos, livros, lápis, borracha, réguas e canetas acondicionados em um saco plástico, que havia sido embalagem de cinco quilos de arroz. Caminhava tão distraído embalado por seus sonhos e planos futuros que nem ouvia a molecada que passava por ele de bicicleta chamando-o de “Mandioca”. Ficou assim conhecido quando tinha dez anos e o horteleiro Léo o pegou vendendo mandioca que havia sido roubadas de sua horta.

Ademir pagou o pato por algo que não havia feito, seu irmão Linguiça há mais de um mês aparecia com a mandioca e o encarregava de vender convencendo-o que havia comprado do velho Léo e precisava revendê-la. Linguiça sabia que Ademir teria mais facilidade de vender a mandioca do que ele, pois era simpático, boa pinta e além do mais tinha um rosto angelical e as pessoas quando não compravam comovidas por esses atributos compravam por pena do menino pobre de roupa surrada e chinelo gasto no calcanhar, que batia palmas e perguntava com uma voz suave de menino “dona quer comprar mandioca, eu garanto que cozinha muito bem, se não cozinhar eu devolvo o dinheiro”.

Nas épocas de escassez matavam passarinhos, preás, pombas e pescavam cascudos e lambaris nas poças para misturar com farinha de mandioca e quirera enquanto que mãe lavava roupa para a vizinhança e empregava a maior parte do dinheiro ganho nos medicamentos da sogra e nas despesas de luz, água… Linguiça tinha crises de riso quando após alvejar os animais Mandioca os pegava e fazia uma oração pedindo desculpas por tê-los matado.

Nunca quis matá-los, sempre deixou essa tarefa para o irmão. Certa vez entrou numa crise de choro e tristeza que se alongou por dias, Linguiça havia alvejado uma pomba e a mesma ficou dependurada em um galho perto de onde estava. Mandioca teve de subir a árvore para pegá-la e encontrou seu ninho com dois filhotes.

Não sabendo o que fazer com os filhotes abandonados decidiu adotá-los levando-os para casa. Mandioca não se consolava de ter ajudado Linguiça ter matado a mãe daqueles filhotes e para piorar a situação no segundo dia em que fazia às vezes da mãe alimentando os bichinhos com minhoca, por um descuido entrou um gato na casa e os comeu.

A partir desse dia negava-se a sair de casa com Linguiça para caçar. Indo apenas tirar leite escondido das vacas do velho Vantuir Neto todas as tardes, quando laçavam as leiteiras e arrastavam-nas para as moitas e ordenhavam lhe as tetas com o cuidado de tirar apenas um pouco de cada vaca para que o dono jamais descobrisse levando o leite engarrafado e dentro de uma mochila para que ninguém desconfiasse, e assim conseguiram sobreviver às épocas difíceis. Em casa Linguiça dizia que havia pastoreado as vacas no outro lado do campo e como pagamento recebera o leite.

Os dois irmãos sempre foram muito unidos. Linguiça sempre aprontou as suas enquanto que Mandioca perseguia seu sonho de trabalhar em um escritório e dar uma vida melhor para sua avó e sua mãe, para isso em suas brincadeiras vivia imaginando-se chefe, dando ordens e ensinando os empregados.

Quando Linguiça completou 20 anos e Mandioca 18 anos, frequentaram um grupo de jovens na paróquia local por seis meses, sendo que Linguiça por ter aplicado golpes na maioria dos integrantes do grupo foi praticamente expulso do mesmo. Mandioca naquela altura já trabalha numa empresa agrícola e cursava pedagogia na faculdade do município onde conheceu Graziele e a integrou também aos seus novos amigos da igreja, como também passou a dedicar-se mais seriamente aos estudos. Linguiça continuou com seus rolos de venda de drogas, roubos a residências fora da comunidade e começava então a especializar-se em receptação e comércio de roubos efetuados por outros, somando várias passagens pela polícia.

O tempo passou e os sonhos de Mandioca se concretizaram após muitas lutas e sacrifícios. Conseguiu enfim dar uma vida melhor a sua mãe, já de cabelos brancos e maltratada pelos anos de trabalho árduo. No inicio do terceiro milênio, o professor Mandioca encontra-se com seu filhinho José Henrique brincando de bang, bang em sua casa no fundo do terreno de sua mãe a duas quadras da casa de sua avó com quem morava Linguiça.

Era sete da noite quando doze policiais cercaram a casa de Linguiça e anunciaram sua prisão por tráfico e receptação de roubos. Ao receber voz de prisão, Linguiça reagiu atirando, matou dois PMs e feriu um, sendo auxiliado por sua companheira e cúmplice Elis, que municiava as armas para o marido.

Quando alvejou os dois PMs que estavam na frente de sua casa não imaginou que havia outros atrás das viaturas e quando colocou seus pés na rua foi alvejado por três tiros, mesmo assim correu atirando nos policiais que o perseguiram pelas ruas do bairro e quando chegou na casa de sua mãe já dependurado no portão recebeu mais de 10 tiros.


Ao ouvir todos aqueles tiros Mandioca que brincava com o filho, sem se dar de conta saiu para fora de casa com o revólver de brinquedo do filho que tinha em mãos para municiá-lo com a fita de espoleta… mas, os PMs não sabiam disso e o alvejaram com cinco tiros a queima roupa, a última imagem que viu foi a de sua esposa e filho desesperados e os olhos tristes de sua mãe com terço na mão lamentando a morte dos dois filhos… 

Obs: “Pé de porco” é uma designação pejorativa empregada para referir-se aos brigadianos (PM) no Rio Grande do Sul. Sendo uma variação do antigo significado “Pede porco”, já que antigamente a polícia do interior após uma ação era sempre presenteada com um pedaço de porco  ou o animal inteiro. Mas, com os passar do tempo, segundo os mais antigos, os policiais passaram a pedir o porco antes das ações. Sendo assim, logo que a polícia entrava em uma comunidade o povo já exclamava:  lá vem os “pede porco”. Disso originou-se o termo “Pede porco”, que com o próprio tempo e a falta de informação do significado real, passou a ser simplesmente “pé de porco”. Linguiça e Mandioca: uma tragédia urbana

 
 
 

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