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Millôr do Horto o menino do pé torto


Na primeira semana de março de 1982, como há cinco anos Millôr lutava na saída da escola para arranjar um estratagema para não encontrar seus colegas. Esperava todos irem embora escondido no banheiro. Mas quase sempre eles o esperavam e então quando Millôr saia no portão da escola uma turma de meninas e meninos cercavam-no enquanto ele corria arrancando gargalhadas de mais de vinte pestinhas que esperavam o alvo preferido de seus sarcasmos e maldades, perseguindo-o até próximo de sua casa. Sempre o fazendo correr, pois achavam engraçado o seu jeito oscilante de mudar os passos e os tombos que levava quando as pernas teimosas enganchavam uma na outra. Quando não esboçava reação os mais valentes ou covardes lhe batiam. Com o tempo descobriu que correndo fazia o que eles queriam e então não apanhava. A turba ia pela rua a cantar a velha cantiga que fizeram para atazanar Millôr.

♫ ♫♫ Millôr do Horto nasceu com o pé torto

anda desajeitado parece cagado,

Millôr do Horto pepé aleijado

Parece estar cagado…♫♫♫


Mas aquele dia foi diferente. Dois meninos e uma menina armados com pedras arremessadas por estilingue e pedaços de bambu atacaram o bando. Um dos meninos a cada mancada que dava era uma paulada nas costas de um dos algozes de Millôr, enquanto que o outro menino e a menina manejavam os estilingues. Luana, Nelson e Agamenon dispersaram o bando e conduziram Millôr até sua casa. Os três também sofreram muito nas mãos dos colegas, Agamenon tinha a perna esquerda mais fina que a direita e isso lhe rendeu o apelido de “deixa que eu chuto”, Luana e Nelson usavam óculos fundo de garrafa e não foram poucas as oportunidades em foram derrubados e tiveram seus óculos quebrados somente para serem vistos tateando o chão a procura deles enquanto a turba gritava em coro “quatro olho, cara de repolho, quatro olho…”. 


Naquele ano estavam na mesma turma e então resolveram unir forças para enfrentar seus algozes. Luana sempre esteve à frente encorajando Nelson e Agamenon dizendo que os moleques eram maioria, mas que tinham de reagir e reagindo deixariam seus carrascos desarmados, pois não esperavam essa atitude deles.


Foram personagens de guerras de pedra quase que intermináveis na saída da escola, ganharam vários hematomas, mas desenvolveram uma pontaria tão eficaz manejando estilingue que depois de muito dedo quebrado, rosto inchado e hematomas por várias partes do corpo seus inimigos se renderam. Foi assim que conseguiram impor respeito e agora conquistaram mais um para o clube dos “Desprovidos da natureza perfeita” como autodenominavam o grupo, que ficou conhecido como o “Quarteto”.


A história de Millôr é um símbolo do abandono paternal, é a síntese da falta de hombridade, filho do amor clandestino entre uma prostituta e um cidadão dito respeitado. Margo, sua mãe de sangue não resistiu ao parto, mas deixou um desejo: seu filho aleijo deveria de ser deixado na porta da legítimo pai. Teresa a outra, a legítima ao ver o pequeno boneco de carne com os pés virados para dentro aos choros em sua porta teve despertado em seu coração um amor transcendental, foi amor à primeira vista, quis logo adotá-lo. Aderbal sentiu no seu ventre que aquele aleijo de pés virados era sangue do seu sangue, filho de seu amor clandestino, amor sem fronteiras, amor proibido, amor intenso, amor sem igual, mas que não podia ser assumido a luz do dia.


Quando viu aquele bebê olhos de violeta sentiu um horror percorrer suas células, sentiu que Margo o havia abandonado. Nunca mais sentiria seu calor, seu fungar no pescoço, suas mãos a percorrer seu corpo e pousar em seu falo rígido numa forma de amor descomunal, um amor verdadeiro onde se sentia instrumento do prazer, nunca mais sentiria os prazeres dionisíacos da sedução, nunca mais sentiria as veleidades epicuristas da carne. Ali estava a sua frente o que balizaria o fim de uma era de depravação e de prazer extremo a qual tinha gozado por seis anos ao lado de Margo. Logo conclui que aquela criatura de carne e osso, aquele aleijo era o fim de uma era, de uma fase que se apagara com o último suspiro daquela que realmente amava, mas que não era lícito assumir a luz do dia onde os homens ditos cidadãos respeitados já estavam acordados e circulavam pelas ruas bem alinhados e comportados carregando consigo suas mais secretas ambições e segredos profundos.


Millôr para Aderbal era nada mais, nada menos que a prova de que o ciclo de suas fugas e de seu amor clandestino havia acabado. Por isso lhe odiava. Não quis saber de ficar com o bebê, mas Tereza o quis e lutou para poder abrigá-lo em seus seios macios, pois sabia no íntimo que ele era fruto de um deslize de seu amado e que aquele bebê não podia carregar consigo o erro inconsequente de seu animal marido, que lamentava apenas ter perdido o objeto de seu prazer, o receptáculo descartável de suas angustias e desatinos. 


Assim cresceu Millôr, abastecido pelo amor emprestado de mãe e pela ignorância e desprezo do pai legítimo. Foi relegado a terceiro plano, teve tratamento totalmente diferenciado dos demais filhos de Aderbal. Criou-se mais na barra da saia da mãe que não era de sangue e com a avó materna emprestada com quem morou até os vinte e um anos de idade numa edícula aos fundos da casa totalmente ignorado pelo pai e acolhido pelo amor fraternal da mãe afetiva. Não há como medir qual sofrimento fora maior, se o amor de mãe que não podia acolher o filho dentro de casa, proibida pelo marido que delegou a criação do aleijo a sogra ou do próprio Millôr que viveu rejeitado pelo pai e pelos meios irmãos.


Millôr passou por 13 cirurgias de correção ortopédica e muito sofreu com os pinos que lhe introduziram nas pernas e pés. Havia dias em que Serafina passava em claro com seu neto revirando-se de dor, mas não desistiu. Gastou toda sua economia de anos de trabalho nas cirurgias e tratamento de fisioterapia. E depois de mais de quatro anos de luta teve, segundo ela a maior alegria de sua vida, seu neto emprestado deu seus primeiros passos, sem uso de botas ortopédicas ou muletas. Millôr com passos oscilantes e rígidos abriu os braços e chorou junto ao ombro de sua avó.


A grande rejeição sentida por Millôr, -que influenciado pela avó desde os cinco anos quando ela o ensinou a ler e apaixonar-se pela leitura- foi ter de estudar numa escola pública, indo e vindo caminhando uma considerável distância, enquanto seus irmãos gozavam de transporte escolar e matriculas no melhor colégio da cidade. Aderbal quando questionado pela esposa e pela sogra sobre a do porque não matricular Millôr na mesma escola que Paula e Danilo, sarcasticamente dizia que  era desperdício de dinheiro investir num aleijado.


Sua avó Serafina, como educadora aposentada sabia a grande diferença entre a educação privada e a educação pública e esmerou-se a aperfeiçoar os estudos de Millôr com reforços, pois Serafina não concordava com a atitude do genro em diferenciar o tratamento dispensado a Millôr e então tratou desde o inicio de lapidar a parte intelectual e moral do neto ensinando-o a ser resignado com o presente e obstinado pelo futuro.


Aderbal todos os anos levava a família a praia nas férias, mas a ausência de Millôr foi sempre constante. Serafina sempre deu um jeito de veranear em outra praia junto com o neto e um filho solteirão que por toda trajetória de Millôr fez às vezes de pai do garoto. “Tio Samuel é meu melhor amigo”, deixou escapar certo dia em sala de aula quando a professorinha do primário falava da importância de se ter e bem tratar os amigos. O tempo passou e quando estava cursando a terceira serie começou a despertar a indiferença agora de seus colegas, pois perceberam que ele destacava-se em todas as matérias, não havia notas abaixo de 9,0. 


Millôr então percebeu que não era legal sair-se bem na escola, passou então a ser mais impopular, pois, para a garotada de sua época só permitiam que qualquer um fosse destaque apenas em esportes e estripulias e assim os tornavam populares principalmente entre as garotas. Se sair bem na escola, nem pensar, era o fim do mundo e a pecha de Nerd logo pegava, sem falar dos empurrões e tapas que Millôr levava, mas não desistiu dos livros e das novas ideias, sua avó sempre lhe lembrava de que tudo passa e que ele não deveria desgrudar os olhos do futuro, pois no futuro ele poderia vir a ser o padrão de um ou mais de seus agressores e então seria a hora de tratá-los como se trata um ser humano.


Quando partilhava com a avó o preconceito e as dores da discriminação que sofria, Serafina o animava dizendo que não se envergonhasse de ser deficiente, pois era um privilégio e essa era uma condição especial dada a seres especial por Deus, para avaliar a humanidade das demais pessoas perfeitas fisicamente. Millôr se entusiasmava quando a avó contava-lhe as histórias de homens e mulheres Grandes que foram deficientes físicos.


Serafina contou por várias vezes a historia do quarto imperador romano Claudius que era manco de uma perna e gago e nem por isso deixou de ser um dos melhores imperadores de Roma. Quando Millôr soube que o poeta grego Homero que viveu a VII a.C. era cego, fez sua avó conseguir os volumes da Odisseia e da Ilíada obra na qual identificou-se muito com o deus Hefesto, o ferreiro divino, que segundo a mitologia grega por ter nascido com as pernas atrofiadas foi rejeitado pela mãe Hera e jogado do Olimpo pelo pai Zeus. Na terra compensou sua deficiência física desenvolvendo alta habilidade com metais e artes manuais e casou com Afrodite a deusa da beleza. Soube que o poeta Luiz de Camões após uma batalha no Marrocos ficara cego e que Galileu Galilei por consequência de um reumatismo também ficara cego no fim da vida.


Certo dia Serafina chamou Millôr e pediu que junto com ela escutasse um repertorio de músicas que tocaram em sequência:  “Nona sinfonia” de Ludwig Van Beethoven, “I Can’t Stop Loving You” de Ray Charles e “Como é grande o meu amor por você” de Roberto Carlos. Depois que escutaram ela fala a Millôr “sabia que o primeiro, o Beethoven era surdo, o segundo Ray Charles é cego e o terceiro, Roberto Carlos usa uma perna mecânica, pois foi atropelado por uma locomotiva quando criança e perdeu parte de sua perna direita”. A luta de Serafina era para que Millôr não desistisse da vida por ser deficiente e assim passaram-se os dias em que ela apresentou gravuras das obras de Aleijadinho e historias de outros deficientes que venceram na vida estimulando Millôr a viver uma vida normal em busca de seus sonhos.


Fazer parte do quarteto foi a luz que encontrou no fim do túnel de sua vida. Desde então teve diálogo com os colegas que carregavam o mesmo estereótipo. Na adolescência teve acesso a outras obras e estilos da literatura universal e nacional, pois Luana era uma leitora constante de Machado de Assis, de Clarice Lispector e Jorge Amado, Agamenon por influencia do pai Zoroastro e da irmã Clitemnestra era aficionado por mitologia grega e Nelson via-se sempre entre as histórias de Conan Doyle, H.G Wells, Pearl S. Buck e John Steinbeck. Nunca quis parecer esnobe, por isso jamais revelou que os livros aos quais os amigos provocavam discussões já haviam sido lidos por ele uma ou duas vezes. Sua aventura pelas drogas foi breve como foi a de Agamenon e Nelson que abandonaram as experiências com psicotrópicos logo após Luana ter surtado. Oportunidade em que sua avó abriu seus olhos e rememorou o seu compromisso com o futuro.


Na década de 90 formou-se em medicina, especializou em psiquiatria e hoje é médico respeitado no sudeste brasileiro. Sua avó o deixou no inicio do século 21 aos noventa e dois anos. Seu pai faleceu em um acidente automobilístico em 1998 sem reconhecê-lo afetivamente como filho. Seus irmãos Paula e Danilo ingressaram na área da medicina por influência dele que mesmo sendo mais novo e já formado lhes concedeu guarida e bancou os estudos de ambos. Sua mãe adotiva Tereza mora com ele numa confortável casa no litoral do sudeste brasileiro. Desde criança sempre visitou o túmulo de sua mãe e após a morte de sua avó adotiva transladou os restos mortais de Margo para o jazigo que construiu para a família na cidade onde mora.

Millôr do Horto o menino do pé torto

 
 
 

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