O hábito de ler e o analfabetismo funcional
- Davi Roballo
- 28 de jan. de 2009
- 3 min de leitura

“Recomendar a leitura de livros é tão importante e tão inútil como recomendar que se beba muita água. É bom leitor quem transformou o ato de ler numa necessidade e num instinto primários.” *
Ler sobre um autor é adquirir um repertório de conhecimentos sobre ele. No entanto, não significa ler sua vida plena, muito menos viver ou revivê-la. Mas é obter subsídios para avaliar e melhor interpretar seus pensamentos, o que possibilita-nos julgar com imparcialidade e espírito aberto todo o seu trabalho, diminuindo bastante a ansiedade, dúvidas e interrogações que possam surgir.
Aprendi isso quando degustei pela primeira vez aos 15 anos a obra “Assim Falava Zaratustra” de Nietzsche. Quando o li, entendi muita coisa, mas sua astúcia de exímio poeta e forma de escrever através de aforismos deixava-me angustiado, pois minha sede era grande e eu sabia que havia muita água para extrair daquela fonte, no entanto não encontrava meios para tal.
Primeiramente interpelei uma professora de literatura, que considerei ser capaz de ajudar-me, mas deu-se tudo ao contrário. Quando falei de Nietzsche ela simplesmente falou-me que não colocaria as mãos na obra do “Anticristo”. Mesmo assim não desisti e meio sem jeito procurei um professor de história, o qual eu sabia tratar-se de um helenista, era um senhor perto de seus sessenta anos, aposentado pela universidade e que ainda aventura-se pelos colégios de ensino médio, pelo prazer de ensinar. Quando o consultei, ele olhou para mim e perguntou-me qual foi minha impressão sobre a obra e se ela não era demasiadamente ácida para minha cabeça.
Ao relatar-lhe o que havia entendido, ele confessou-me que já o havia lido e percebido as colocações que lhe apresentara. Foi então que esse mestre se interessou em ajudar-me e, quinze dias depois passou-me as mãos uma biografia sobre o autor, dizendo-me que a partir dela podemos com toda certeza desvendar um pouco da alma de um autor e que jamais se deve ler uma obra sem saber algo sobre quem a escreve, pois se faz necessário entender mesmo que parcialmente o seu espírito.
A arte da leitura possibilita-nos transpor barreiras muitas vezes consideradas intransponíveis, como nossos dogmas e superstições. Infelizmente poucas pessoas dedicam-se a este passa-tempo, que além do prazer, proporciona conhecimento e troca de experiências. Mas ler por ler não basta, se torna imperioso saber interpretar as mensagens que constam nas entrelinhas de um livro, por isso é importante conhecer o autor e entender de sua filosofia, seu estilo e formação sócio-cultural.
A leitura possibilita-nos a aquisição de um repertório amplo, aspecto necessário na construção de pensamento critico e independente. Como brasileiros, lemos pouco, o que podemos comprovar pelas “pérolas” do Enem, que circulam pela web. Estamos fazendo parte de uma geração de analfabetos funcionais, ou seja, aqueles que sabem o ler e o escrever básicos, mas não sabem discutir, muito menos interpretar.
Estamos mergulhados na cultura de consumo, onde o status vale muito mais do que uma cabeça pensante. Isso parece vir de há muito. Creio que essa inversão tenha começado com os sofistas ainda na época de Sócrates, onde o ensinar e o aprender deixaram de ser um prazer e passaram a ser mercadoria. Essa idéia encontra respaldo ao que diz Schopenhauer “Quem vê as inúmeras e variadas instituições destinadas ao ensino e ao aprendizado, além da grande multidão de alunos e mestres, poderá acreditar que para o gênero humano a compreensão e a verdade são de extrema relevância. Todavia também nesse caso as aparências enganam. Os mestres ensinam para ganhar dinheiro e não visam à sabedoria, mas aparecer e receber o crédito de seus semelhantes; e os alunos não estudam para adquirir conhecimento e compreensão, mas para poderem falar e atribuir-se prestígio”. **
Nestes tempos modernos e conturbados a saída é o autodidatismo, onde os livros passam a ser nossos maiores mestres e melhores amigos, pois levam até nossas mãos as chaves, que abrem as selas dos grilhões a que somos submetidos desde o nascimento e por falta de leitura de mundo e livros, não vislumbramos… Ler continua sendo a panacéia para enfrentar a vida frente a frente.
* CEIA.Carlos.O Professor Sentado: Um Romance Acadêmico, Edições Duarte Reis, Lisboa, 2004.
** SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de insultar. São Paulo, Martins Fontes, 2003.
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