O jardineiro e o colibri
- Davi Roballo
- 29 de mar. de 2013
- 3 min de leitura
O jardineiro e o colibri
Iniciar-se-ia mais um dia de trabalho normal para aquele jardineiro, não fosse sua revolta, por ter sido excomungado ao pedir esclarecimentos sobre as contradições que encontrara no livro, base de sua fé, após profundo estudo. Estava a podar uma roseira, quando observou um colibri num suave revoar lhe dirigir a palavra.
– Vejo, que traz contigo uma grande revolta mergulhada em desapontamentos e dúvidas, meu velho e bom jardineiro.
Mesmo surpreso, por ver aquela ave falar, lhe indaga.
– Quem és tu? E como podes saber das dores que trago comigo, juntamente com uma imensidão de duvidas a ponto de não saber mais quem realmente sou e qual meu devido lugar nesta vida?
– Sou um simples colibri a revoar de flor em flor e por conhecê-las todas, posso dizer-te, que tu és um homem. És tudo e ao mesmo tempo nada.
– Como posso ser tudo e ao mesmo tempo nada?
– Diante de tuas ações constróis a tua própria história e ela pode ser vazia ou abundante. Tudo depende de como escrevê-la.
– Diga-me então colibri atrevido, já que o vejo transvertido no próprio demônio, quem sou? Por quê sempre encontro obstáculos em meu caminho? E o por quê de minha confusão mental nesse momento em que resolvi romper com todas as contradições, que antes defendia com tanto esmero.
– És como todos de tua espécie. És a chama que surgiu e acessa permaneceu desde que a razão brotou na paisagem, anunciando ao porvir que nem por isso o homem troglodita morreu.
És o homem, que morreu a espera das multidões, sentado num trono trajado nos remendos da própria pobreza, por alimentar demasiadamente o medíocre eu.
És como o sal da terra que temperara as entranhas humanas a cada nascer do sol, para posteriormente alimentar a multidão de lobos que cercam teu templo mental.
És um Deus soterrado pelos ratos que cavaram suas tocas em teu quintal, a ignorarem tua própria divindade e a impedir-te de reinar sobre teu infindável céu.
És um pássaro impedido de voar e cantar, a fim de não acordar os lobos que dormem em profundo sono na verdejante relva fresca e perfumada de teu jardim.
És um escravo condenado ao labor, que propicie a sobrevivência dos ratos que discursam nas tribunas de teu santuário, a calcar teu grande valor.
És como o homem, que tinha suas forças concentradas nos cabelos, mas que foram carcomidos pelas pragas que adquiriu no insano e forçado convívio, que tens com os lobos, que te prendem pelo pé.
És um espectro ininteligível, guardado em um frasco, a fim de não assombrar a petulância dos lobos que carregam suas presas para putrefazer-se ao lado de ti, em tua própria casa.
És tu agora o fruto da dissolvência das suposições dos lobos, que uma vez dissipadas transformam-se em laço de armadilhas fatais onde eles próprios, incautos caem.
És tu, um sol impedido de radiar pelos vales e colinas, para que a lua continue a perdurar à noite onde diante dela os lobos prostrados cultuam as trevas de suas inteligências.
És tu a luz que se mistura ao brilho das estrelas e que se infiltra entre as nuvens, mas que não encontra espaço entre os ratos para chegar até o verdadeiro homem que existe dentro de ti, através de um raio do sol.
És tu um gigante adormecido pelo entorpecente, que os lobos injetaram em tuas artérias, a fim de manter-te desacordado, enquanto sacrificam suas presas em tua sala.
O jardineiro, após escutar aquele colibri, sacou sua tesoura e decepou-lhe a cabeça. Não admitiu o jardineiro, em sua acepção ignorantista, que aquela tão pequena e frágil criatura tivesse mais entendimento das causas humanas que o próprio homem. O colibri em seu ultimo suspiro exangue ainda falou-lhe:
– Que ingenuidade a minha, esquecer que também és humano.
O jardineiro e o colibri
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