SÍNDROME DO TIO PATINHAS
- Davi Roballo
- há 4 dias
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— Você não vive, você contabiliza.
Ele riu. Um riso curto, engomado, feito de dentes e desdém. Ajeitou a gravata, conferiu o saldo da conta no aplicativo e, ao ver mais um zero no final, estremeceu por dentro. Era um gozo silencioso, quase sagrado. Não era amor. Não era beleza. Não era vida. Era cifra.
Chamo isso de Síndrome do Tio Patinhas.
Um distúrbio existencial, um desvio libidinal da alma, em que o sujeito não acumula riqueza para usufruí-la, mas para contemplá-la — como quem empilha cadáveres para se lembrar de que está vivo. Trata-se de uma patologia discreta, mas devastadora. O paciente se excita com o extrato bancário como outros se excitam com um poema, uma pele, um pôr do sol. Só que o extrato não retribui, não pulsa, não morre — apenas cresce como um tumor que se confunde com conquista.
A “síndrome” não tem origem genética, mas afetiva. Vem de um medo atávico da escassez, uma fome ancestral por controle, uma neurose de poder travestida de prudência. São pessoas que tratam o dinheiro como outros tratam deuses: com fé cega, sacrifício e temor. Elas não querem comprar o mundo — querem guardá-lo num cofre.
O acumulador compulsivo de riquezas não quer segurança — quer domínio. E é aí que reside a perversidade: quanto mais possui, menos toca. Sua fortuna vira uma muralha, não uma ponte. Ele se separa da vida por meio de seus bens. Evita o risco, o prazer, a entrega. Teme o tempo, porque o tempo desvaloriza tudo, até o ouro.
E quando, porventura, precisa gastar, não o faz com alegria — mas com culpa. Uma dor aguda, como se estivesse arrancando pedaços de si. O dinheiro, para ele, não é instrumento, mas identidade. Ele é o que tem. E quanto mais tem, menos é.
Essa síndrome é socialmente aceita, até louvada. Confunde-se com sucesso, com esperteza, com planejamento. Mas se você olhar nos olhos dessas pessoas — não verá serenidade. Verá cálculo. Verá paranoia. Verá a mesma angústia de um miserável, mas em um trono acolchoado de cifras.
A Síndrome do Tio Patinhas é, portanto, um espelho negro da cultura que venera o acúmulo e despreza o desapego. Um sintoma de uma civilização que perdeu o tato e passou a contar os dedos. Um tipo de avareza que não se satisfaz com o dinheiro em si, mas com a sensação de ter mais do que os outros — como se a miséria alheia fosse o verdadeiro tesouro.
Se Freud disse que o dinheiro é o excremento do demônio, eu arriscaria dizer que há quem se banhe nele — não por prazer, mas por desespero.
— E se eu perder tudo?
— E se nunca tiver tido nada, apesar de tudo?
A pergunta que nunca ousam responder.
Porque no fundo, muito no fundo daquele cofre emocional, o que se guarda não é o ouro. É o pavor de se olhar no espelho e não encontrar nada além do saldo.
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