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Sobre a liberdade




A que azar, pois se deverá que o homem, livre por natureza, tenha perdido a memória da sua condição e o desejo de a ela regressar? *

Falamos tanto em liberdade como se essa abstração fosse algo existente e consumado. Quando na verdade não somos livres, nem mesmo nas nossas mais intimas atitudes e decisões. Para entendermos desse complexo assunto é preciso transportarmo-nos para fora do contexto humano e avaliarmos nossas relações de forma fria e realista. Só assim encontraremos a nós mesmos mergulhados num pântano de mentiras e sofismas libertários.

Quem melhor interpretou o gênero humano e suas relações quanto à liberdade, foi Etienne de La Boétie em sua pequena obra “Discurso Sobre a Servidão Voluntária”. Um importante texto, que nos leva a refletir, que o homem quando esquece-se de si, menosprezando-se, abre uma janela para a necessidade de servir outro humano, conferindo a ele uma outra distinção, muitas vezes quase que sobrenatural, principalmente aos que distinguimos como autoridades, reconhecendo neles o poder, pelo qual o ser se dobra tornando-se servo ou escravo conforme o próprio desejo. E nessa submissão a prostituição moral impera, é ai que rasteja-se por um melhor “conceito” e abandona-se todas as oportunidades de crescimento para viver em torno e em prol de um mais esperto ou mais fraco dissimulado num rol de títulos.

Para perscrutarmos os nossos enganos referentes a liberdade, primeiramente é preciso assumirmos nossa condição de produto de uma evolução biológica, despachando para longe a hipótese da gênese especial, o que fica contraditório diante da realidade fria e indiferente da natureza, pois essas armadilhas apenas nos conduzem a castração do pensamento e aniquilação da vontade de crescer e despontar ante o nicho de hipocrisia.

A liberdade serviu muito para formar a base ilusória das propagandas ideológicas do século XX. Tanto a Leninista quanto a Hitlerista e permanecerá inda por muito tempo, como sendo um sonho inaudito. Fantasias oníricas plantadas no âmago de nossa alma como o mundo utópico de Thomas Morun. Por muito tempo inda, sua ilusão desenhara no consciente coletivo as falsas linhas de fronteira, superioridade, hegemonia econômica e etc. para que os mais espertos continuem a darem-se bem neste mundo de representações.

Vivemos em uma época em que a escravidão das senzalas e casarões sofreu uma mutação para adaptar-se a nova realidade, ou seja, não há mais um tom de pele condicionado a escravidão, mas todos os cidadãos que pagam impostos até para respirar. Antigamente se trabalhava sem remuneração, hoje se ganha para trabalhar, mas o sistema arranjou um jeito de não sair perdendo. Através de impostos devolvemos ao governo mais de 70% do que ganhamos e restante serve para suprir nossas necessidades básicas. Parece que a diferença está em escolher o que consumir, diferentemente de outrora. Infelizmente, ao analisarmos o cotidiano de forma desapaixonada, percebemos que estamos diante de uma escravidão coletiva e inconsciente, a ponto de sermos escravos até de nós mesmos, num anseio por status e consumo.

Sem liberdade a existência resume-se a um grande teatro, no palco interpretamos vários personagens, um a cada esquina na longa avenida que percorremos em direção ao beco da escuridão. Nessa representação, quando se quer buscar a liberdade em escrever e a pensar de forma leal para consigo mesmo, deve-se comprar um terreno e ali enterrar um a um os personagens e preparar-se para a incompreensão. Pois, o homem é um metal tirado da terra e levado a uma forja chamada vida, onde é aquecido e açoitado até ganhar uma forma que se encaixe na sociedade e época a que esteja inserido, e os mais espertos são os ferreiros.

É impressionante o quanto inda necessitamos de ídolos, heróis arranjados e mitos para guiar nossas vidas. Temos medo de destoar do pensamento coletivo, tememos a pecha de “polêmico”, “ateu”, “louco”, “individualista”, “sonhador” e assim deixamos que soterrem o que de mais precioso temos… a inteligência e a capacidade de questionar. Questionar o por que de nossas escolas não ensinarem os educandos a pensar. Questionar o por que ser tão difícil falar em ciência e tão fácil sobre religião.

Afinal, qual é a relação entre os cidadãos e o Estado quanto a liberdade? Se tivermos liberdade o que temos feito dela? Creio piamente que somente a partir do momento em que aprendermos a questionar e a duvidar de tudo e a olhar as pessoas nos olhos, é que iremos vislumbrar a complexidade do mundo submisso em que vivemos, onde o ouro que dão-nos não passa de barro e o vinho é vinagre.

* LA BOÉTIE, Etienne de. O Discurso Sobre a Servidão Voluntária. Tradução J. Cretella e Agnes Cretella. 3ª. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

 
 
 

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