ASCENSÃO
- Davi Roballo
- 23 de jun. de 2022
- 3 min de leitura
Atualizado: há 6 dias

Há momentos em que a alma se vê cercada por uma noite que não cessa, como se o tempo houvesse se rendido à escuridão, e o mundo, silenciosamente, retirado sua promessa de sentido. Nesses instantes em que tudo parece ruir — e o chão se desfaz sob os pés, e o horizonte se curva sobre si mesmo —, emerge, das entranhas da dor, a possibilidade do reencontro. Pois é justamente na ausência de luz que o brilho se revela, e é no exílio da esperança que o espírito é convocado a descobrir sua natureza mais íntima.
A verdadeira prova não está naquilo que nos fere, mas no que fazemos com a ferida. Cada dor que nos atravessa é mais do que um sofrimento: é um chamado. Uma convocação à verticalidade. Uma tensão entre a queda e a escolha de não permanecer caído. Pois não há alma que se engrandeça sem ter sido antes esmagada, não há ascensão que não tenha começado na dobra mais escura da existência. A queda, paradoxalmente, é o impulso inicial do voo.
Quando o mundo lá fora se fecha, o inconsciente se abre. E é nesse terreno obscuro, onde a razão se retrai e os instintos clamam, que o verdadeiro trabalho psíquico se realiza. Não é à luz da lógica que nos reconstruímos, mas no barro espesso das emoções negadas, dos traumas ocultos, das angústias que não puderam ser ditas. A escuridão não é um castigo — é o ventre onde renasce aquilo que o ego não soube sustentar. E todo abismo que se atravessa em silêncio torna-se um útero da transformação.
O ser que ressurge da dor não é o mesmo que caiu. Ele traz na pele as cicatrizes de sua travessia, mas traz também nos olhos uma clareza inédita — a visão de quem viu o avesso da luz e não enlouqueceu. De quem compreendeu que suportar não é resistir, mas escutar. Escutar o que a dor diz, o que o desespero denuncia, o que o cansaço revela. Porque o sofrimento, quando escutado com coragem, deixa de ser um verdugo e se torna mestre.
E há grandeza, sim, naquele que segue mesmo quando tudo lhe diz para parar. Há nobreza no passo hesitante de quem atravessa a tormenta sem mapa. A ascensão verdadeira não é um espetáculo visível: ela acontece no subterrâneo da alma, quando algo em nós — algo muito antigo, algo que resistiu ao tempo e ao trauma — se ergue sem alarde e decide viver. Viver apesar de. Viver entre os estilhaços. Viver como quem sabe que toda noite carrega em si o esboço de uma aurora.
Não se trata de heroísmo, mas de autenticidade. De não mentir para si mesmo diante da dor. De não apressar a cura, de não estetizar a queda, mas de habitar plenamente o vale — e dali, não como quem escapa, mas como quem se transfigura, iniciar a lenta escalada rumo à própria inteireza. Porque a verdadeira força não é a ausência de sofrimento, mas a capacidade de atravessá-lo sem perder o eixo do ser. E esse eixo, em geral, só se revela quando tudo o mais desaba.
A alma humana é, por sua própria estrutura, chamada à travessia. Não fomos feitos para a permanência, mas para o processo. E é nesse processo — no devir, no entre, no durante — que a subjetividade se reorganiza, que os sentidos se redesenham e que o eu, antes fragmentado, começa a esboçar sua coesão. O sofrimento, então, não é o fim, mas o limiar.
A borda do que fomos, e a semente do que ainda podemos vir a ser.
Há, em cada noite escura, uma promessa. Não de conforto imediato, nem de respostas fáceis. Mas de revelação. De uma nudez do espírito que, ao ser vista sem véus, torna-se potência. Aquilo que parecia te aniquilar pode, se olhado com os olhos certos, tornar-se o chão onde teus pés finalmente se firmam. Não para escapar do mundo, mas para pisá-lo com a firmeza de quem sabe que já enfrentou o próprio inferno — e sobreviveu.
A ascensão não é o contrário da queda: é sua consequência mais honesta. É a flor que brota do lodo. O cântico que nasce após o grito. A luz que se constrói, não apesar da sombra, mas a partir dela. E assim, quando voltares à superfície — não como quem retorna ileso, mas como quem volta pleno de si —, compreenderás que a tua chama não se apagou. Apenas se recolheu por instantes, aguardando o silêncio necessário para reacender-se com mais vigor.
E então, poderás dizer, sem triunfalismos, mas com a verdade serena dos que foram às profundezas: “Aqui estou. Indomável. Inquebrantável. Resplandecente.” Não porque venceste o mundo, mas porque suportaste a si mesmo — e, nesse suporte, encontrou-se inteiro.
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