GAVETAS
- Davi Roballo

- 14 de jun. de 2022
- 2 min de leitura
Atualizado: 13 de jul.

Na cômoda de minhas memórias, uma imensidão de gavetas me acompanha como um cão leal que jamais me abandona — fiel guardião dos tesouros e ruínas que acumulei nesta jornada de alma ferida.
Nas primeiras gavetas, aquelas dos dias que se desfolham como pétalas de uma rosa moribunda, vão se acumulando páginas rascunhadas pelo destino e fotografias de meu eu acompanhado de mim mesmo — dupla solidão que habita um só corpo, dupla melancolia que se reflete em espelhos partidos.
Às vezes, quando abro as gavetas emperradas pelo ferrugem do tempo, ouço ao longe gritos de dores vividas, ecos de feridas que sangraram em silêncio. Pela distância que o tempo impõe às cicatrizes da alma, aos poucos se tornam assobios do vento — melodias fantasmagóricas que dançam entre as frestas do coração.
Em outras gavetas, de cores mais vivas que ardem como chamas de velas votivas, coleciono perdões imperdoáveis — aqueles que minha alma ofereceu mesmo quando a razão gritava vingança. Pessoas insubstituíveis e inesquecíveis habitam estas gavetas como santos de uma igreja particular, junto ao calor de abraços que recebi, que dei, bem como outros não dados — fantasmas do afeto que nunca se materializou.
Também há gavetas que exigem cuidados extremos, como relicários de veneno sagrado. Nalgumas estão bem escondidos os manuais de mediocridade que trazem instruções infalíveis para conquistar afeição ao adentrar em um dos chiqueiros hipócritas da sociedade — receituários da alma prostituída que aprendi e depois desprezei.
Guardo noutras gavetas todo o dízimo que deveria ter dado aos padres, pastores e outros mercadores do sagrado, visto que minha fé nunca pediu nada — apenas o silêncio de uma oração que nasce do próprio desespero, apenas a luz de uma vela que se acende na escuridão da busca.
Mais embaixo ficam as gavetas da saudade, todas inundadas por ausências daqueles que retornaram ao útero primordial para serem abraçados pela placenta da Terra — gavetas que gotejam lágrimas como chuva eterna, onde habitam os fantasmas queridos que me visitam nos sonhos e me acenam desde a outra margem do rio.
Ah, cômoda de minha alma! Móvel sagrado onde guardo os pedaços de mim que se despedaçaram pelo caminho. Cada gaveta é um altar, cada memória uma oferenda ao deus incógnito que habita o labirinto do coração humano.
E eu, Ícaro de asas quebradas, continuo organizando estas gavetas com a delicadeza de quem sabe que cada recordação é um fragmento de eternidade, cada dor um degrau da escada que me aproxima do céu impossível.
____ Ícaro Severiano \ Heterônimo Romântico e Trágico de Davi Roballo




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