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A ARTE DE SE DESFAZER

Atualizado: 1 de jul.


 

Viver é, antes de tudo, desfazer-se. Somos seres forjados no paradoxo — desejamos permanência, mas só existimos no fluxo. A memória nos constitui, mas é o esquecimento que nos liberta. Há, na vida psíquica, um delicado equilíbrio entre recordar e abandonar, entre sustentar o que fomos e abrir mão daquilo que já não pulsa. O sujeito que não se permite esquecer vive aprisionado na repetição do mesmo, como se estivesse algemado à sombra do que já foi. Esquecer, assim, não é desrespeitar o passado, mas ousar renascer.


A mente humana, em sua potência criadora, é também uma alquimista silenciosa: transforma perdas em passagens, rupturas em reinícios. Esquecer é um processo psíquico de limpeza simbólica, um esvaziamento necessário que prepara o terreno interno para o novo. Não é amnésia, não é descuido — é escolha inconsciente, é gesto do inconsciente que compreende que a memória, quando fossilizada, adoece o presente. Há lembranças que nos fortalecem, e há lembranças que, se mantidas, nos enrijecem. E é preciso discernir o momento de libertar o que se tornou excesso, peso morto, ruído de um tempo que já não nos habita.


O sujeito que se agarra a tudo — nomes, rostos, feridas, glórias — acaba por encher demais os cômodos da alma. E nesse excesso, não há mais espaço para o inédito, para o silêncio fértil, para o inesperado que deseja emergir. Como o artista que, diante do mármore bruto, precisa retirar tudo o que não é a obra, também nós precisamos esculpir o ser que queremos ser — não adicionando, mas subtraindo. O verdadeiro crescimento não é acumular, é aprender a perder. É desvestir-se daquilo que já não reverbera, mesmo que tenha sido, um dia, morada segura.


O esquecimento é, pois, uma arte. Uma arte que exige coragem, pois o ego teme o vazio. Ele quer conservar, catalogar, preservar a ilusão de continuidade. Mas a alma, ao contrário, deseja o movimento. E para mover-se, ela precisa desprender-se. A dor do desapego é, muitas vezes, o preço da liberdade. E liberdade, aqui, não é a ausência de vínculos — é a presença de um vínculo mais profundo com o que ainda não foi vivido.


Em nível inconsciente, esquecemos porque queremos viver. Cada vez que soltamos uma lembrança que já cumpriu seu ciclo, abrimos espaço para o futuro nos tocar. E isso não significa negar a história, mas dar-lhe o lugar que lhe cabe: não como prisão, mas como raiz. A árvore não cresce para o alto se suas raízes se enroscam umas nas outras embaixo da terra. Da mesma forma, não florescemos se nossos vínculos passados não forem constantemente revisados, ressignificados, e, quando necessário, soltos.


Eis aí a tarefa do ser em análise: tornar-se íntimo de seus apegos, reconhecer a utilidade de cada memória, nomear os afetos que se repetem como espectros, e, finalmente, permitir-se desfazer do que impede a travessia. Há um momento, inevitável e fecundo, em que aquilo que nos sustentava começa a nos paralisar. Quando isso acontece, insistir é adoecer. O trauma que não encontra simbolização repete-se. E o afeto que não encontra despedida apodrece dentro do sujeito.


A arte de se desfazer é, portanto, também um luto. Um luto sem velório, sem data, sem corpo — mas com marcas. E todo luto é um rito de passagem: a travessia do que foi para o que pode vir a ser. Não se trata de esquecer por completo — isso seria aniquilação —, mas de esquecer o suficiente para que o novo tenha por onde entrar. De lembrar sem se encostar, de honrar sem se prender, de carregar na alma um eco e não uma âncora.


A psique saudável sabe morrer e renascer inúmeras vezes. Ela se desfaz, se derrama, se refaz. Ela compreende que a permanência, quando idolatrada, se torna cárcere. E que toda identidade, por mais sólida que pareça, é uma ficção transitória. Não somos os mesmos de ontem, nem seremos os mesmos amanhã. A cada esquecimento, um pedaço do velho eu se vai; a cada acolhimento do novo, um fragmento de futuro se encarna.


Viver, afinal, é esse ofício estranho de esculpir-se com ausências. Somos feitos dos rastros do que deixamos, dos espaços que abrimos, dos nomes que desaprendemos a chamar. E é nesse desnudamento que reside a chance de verdade: uma verdade que não se fixa, mas se revela no movimento. Cada esquecimento é uma entrega ao mistério. Cada lembrança solta é uma porta aberta para a criação. Assim, a vida não se sustenta apenas naquilo que se repete, mas naquilo que se transforma. A arte de se desfazer é a arte de confiar na potência do vazio. E confiar no vazio é confiar na vida. Pois só quem se desfaz pode, de fato, tornar-se.

 
 
 

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