O apanhador de latas
- Davi Roballo
- 13 de abr. de 2016
- 4 min de leitura

Um carrinho de supermercado guiado por um corpo andrajo movimentava-se tranquilamente pela rodovia, como se o condutor caçasse a morte, a rainha das trevas para que desse fim a sua sina de apanhador de latas, mas não era bem assim, Juvêncio era feliz juntando latas nas estradas e nas ruas da grande cidade.
Religiosamente quando encontrava uma garrafa ou uma lata de alumínio recolhia e pedia desculpas à mãe Terra pela descura de seus irmãos. Saía cedo a peregrinar em busca do obsoleto e do supérfluo jogados nas ruas e nas estradas e a noite recolhido na carcaça de um ônibus velho folheava as páginas amareladas de Dom Quixote, onde prendia seu olhar curioso e vez por outra desenhava um sorriso angelical e doce em seu rosto iluminado por duas velas de parafina e quando o sono lhe abraçava fechava carinhosamente o livro encontrado em uma lata de lixo a dizer: que sorte a minha, que felicidade ter vivido até agora e poder aos 62 anos ler este fantástico livro, ah como sou feliz em ter olhos tão bons e ainda me emocionar com a vida, ah que felicidade…
O velho Juju era tido como louco por todos que passavam por aquela esquina e o viam sair do velho ônibus e estender as mãos aos céus a dizer: obrigado estrela de fogo que iluminas meu dia, minha alma e minha vida, obrigado por ainda não ter se cansado dos homens. Obrigado mãe Terra pelo alimento que comi ontem e pelo que comerei hoje. Obrigado universo sem tamanho por toda minha felicidade e por toda minha riqueza.
Juvêncio mesmo com os gracejos dos passantes não deixava de abraçar árvores e chamar cachorros e outros animais de irmãos, enquanto se dirigia para a lanchonete do Joaquim e mal chegava o português logo lhe perguntava:
— O que é felicidade para você Juju? E Juvêncio respondia:
— É uma caneca de café com leite acompanhado de um pão com mortadela pela manhã e ler um bom livro durante a noite, enquanto tenho a companhia e o silêncio de meus cachorros. E todos gargalhavam pela forma espontânea e alegre que Juvêncio falava de sua felicidade.
Joaquim com a intenção velada em mostrar a seus clientes de que aquele mendigo era diferente, sempre questionava Juvêncio:
— E o que meu amigo anda lendo?
— Dom Quixote –disse Juvêncio.
— Qual parte estás Juju? —Insistia Joaquim. E para surpresa dos que ainda não haviam ouvido e não conheciam Juvêncio, o mendigo feliz começava sua preleção, o que estava se tornando uma tradição a ponto do proprietário ter pensado em ampliar o espaço para acomodar aqueles que antes de conhecerem Juvêncio consumiam o alimento e na pressa rumam para seus destinos e agora saiam pensando na vida que levavam e no que estavam levando da vida.
— Estou na enigmática parte em que o Cavaleiro da Triste Figura enfrenta 40 Moinhos de vento que ele jura serem gigantes, derrota 20 e é derrotado por 20. Genial, genial esse Cervantes, pois essa parte nos mostra o absurdo que cometemos muitas vezes na vida na inutilidade de enfrentar o que não existe, na sandice em construir uma ficção para nos proteger da realidade. Criar um mundo paralelo por termos medo de explorar nosso mundo interno, um mundo desconhecido e que nos causa pânico só o fato de olharmos fixamente para dentro de nossos olhos quando estamos diante de um espelho.
Em pouco tempo Juvêncio já havia atraído um grande número de expectadores para seu comportamento exótico e enigmático. Em um determinado dia foi interrompido por um homem de boa aparência e instigante conversa, a lhe informar que há dias vinha gravando suas performances e que todo material gravado daria excelentes livros, documentário e muitas entrevistas em jornais e tvs. Disse a Juvêncio que ele não se preocupasse, pois já estava providenciando tudo e com muita facilidade, pois era produtor de um grande canal de TV.
Juvêncio escutou tudo atento e depois que todos silenciaram —principalmente os que estavam eufóricos por tamanha sorte de um mendigo sábio— deu uma volta com a mão direita coçando a cabeça e soltou uma gargalhada dizendo:
— Eu, largar minha vida livre, leve e entrar nessa prisão em que vocês vivem, nunca! Tudo o que possuem eu já possui e quanto mais possuía, mais pobre ficava, já vivi trancafiado em casa como vocês vivem e hoje exposto aos perigos das ruas estou mais seguro que todos…
— Mas é uma oportunidade de mudar para melhor tua vida. Disse o produtor.
— Minha vida eu mudei para melhor desde que decidi viver como vivo.
— Juntando latas! – reagiu o produtor.
— Não. Recolhendo o lixo que as pessoas que se julgam felizes por ter um carro, um apartamento e um bom emprego jogam por onde andam, pois perderam a sensatez ao tratarem as ruas como tratam o ambiente interno de si mesmas.
— Você não entendeu. Estou te dando uma oportunidade de sucesso e de levar uma vida tranquila.— enfatiza o produtor.
— Isso é tudo o que minha vaidade quer. Se eu der isso a ela, tudo que há de harmonia em mim evapora. Passarei a ser alguém agitado e insaciável, pois uma vez acordada a vaidade se torna cada vez mais voraz a ponto de consumir quem a alimenta.
— Não seja intransigente, —insiste o produtor— quero te oportunizar uma vida digna a um homem de tua sabedoria.
— Não meu caro, talvez não saibas, mas queres mesmo é se aproveitar das bobagens que digo para ganhar dinheiro e posteriormente comprar, comprar e comprar futilidades na esperança de preencher dentro de ti o que não pode ser preenchido. Insistirá tanto como vem insistindo em preencher o impreenchível, sem sucesso, que um dia quando perceber o rastro do tempo em teu rosto vai lembrar e dar razão a este velho que todos percebem como um louco, um Diógenes contemporâneo, que vive, não em um barril, mas dentro de uma sucata de ônibus…
Juvêncio ainda anda pelas ruas e pelas estradas apanhando latas agasalhado em sua roupa surrada, ciente de que o agasalho da felicidade é o coração leve e a alegria de viver…
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