FRAGMENTOS DE UM DESPEDAÇAMENTO
- Davi Roballo

- 24 de abr. de 2022
- 2 min de leitura
Atualizado: 13 de jul.

Vidros transparentes de uma janela — metáfora cruel da clareza que jamais possuímos — despedaçados pelo impacto cego de um pombo, criatura que voa sem compreender o conceito de limite. Em contraste sombrio, cacos de um vaso de flores secas, já mortas antes mesmo da queda, derribado pela fúria caprichosa do vento. Duas destruições, duas alegorias do mesmo destino: o estilhaçamento inevitável de tudo aquilo que ousamos chamar de permanente.
Ausências de presença e presença de ausências — paradoxo ontológico que define a condição humana. Por todo lado, o vazio que grita mais alto que a plenitude, e o ser, patética figura trágica, ajoelhado sobre os próprios cacos como um rei destronado contemplando as ruínas de seu reino imaginário.
Em suas mãos, os dedos tornam-se insuficientes para contabilizar quantas vezes despedaçou o próprio coração — órgão que insiste em bater mesmo quando já não há mais nada a bombear senão o vazio. Quantas outras existências dilacerou por puro impulso, sem razão que não a voracidade faminta de um ego que se alimenta de destruição alheia para sustentar sua própria ilusão de grandeza.
Bem ali, o ser ajoelhado sobre seus cacos sangra pelos olhos ao confrontar-se com a mais brutal das epifanias: o quanto se enganou consigo mesmo. Cada lágrima misturada ao sangue é uma confissão tardia, um reconhecimento da farsa que construiu e habitou como se fosse verdade absoluta.
Bem ali, encontra-se ajoelhada sobre os próprios cacos a idealização que nunca se realizou — fantasma de uma possibilidade que jamais teve substância. A esperança que nenhum porto encontrou, náufraga em oceanos de autoengano, deriva eternamente em busca de um cais que existe apenas na geografia imaginária dos sonhos frustrados.
Tal qual quase todos os humanos — essa espécie condenada à representação perpétua —, bem ali o ser se encontra nessa encruzilhada existencial: deseja ser ao representar aquilo que não é, e aquilo que ele não é, paradoxalmente, lhe engole por completo. Eis o drama da autenticidade impossível, onde a máscara devora o rosto que pretendia apenas ocultar.
Logo ali, à frente de seus olhos turvos pela dor do reconhecimento, dois caminhos se abrem como mandíbulas do destino: a estrada árdua da completude e da integridade — caminho dos poucos que ousam enfrentar o abismo de si mesmos — e a estrada fácil da fragmentação perpétua, onde se despedaça para encaixar-se na opinião diminuta e no desejo mesquinho de outros, tornando-se prisioneiro voluntário de expectativas alheias.
Bem ali à frente, revelação última, encontra-se a verdadeira sombra de quase todo ser humano: uma figura patética ajoelhada sobre os cacos de sua falsa vitrine, despedaçada após o choque inevitável com a realidade — essa força implacável que jamais negocia com nossas ilusões, que jamais se compadece de nossas mentiras bem-intencionadas.
Eis o homem: arquiteto de sua própria ruína, contemplando os destroços de uma existência construída sobre fundações de vidro.
____ Eliade Constâncio \ Heterônimo e filósofo melancólico de Davi Roballo




Comentários